
Ninguém em sã consciência questiona a importância de reutilizar água — especialmente diante da crise hídrica crônica. Por isso, cabe ressaltar que do ponto de vista civilizatório, o projeto da Cesan para construir a nova Estação de Produção de Água de Reúso (EPAR), que transformará esgoto em água para uso industrial representa um avanço no uso racional e sustentável dos recursos hídricos. Porém ainda pairam dúvidas nos detalhes da implementação, especialmente considerando a conturbada relação entre Serra e Vitória. Até o momento, a Serra não foi ouvida formalmente.
O que se sabe é que a EPAR irá tratar 300 litros de esgoto por segundo provenientes da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) de Camburi — o popular “Pinicão de Camburi”, localizado na Dante Michelini. Esse esgoto vai ser transformado em água de reuso e vendido para ArcelorMittal e Vale.
A maior parte desse esgoto vem do norte de Vitória, incluindo Jardim Camburi, o bairro mais populoso do Espírito Santo. A EPAR também receberá esgoto de seis bairros da Serra: Hélio Ferraz, Manoel Plaza, Rosário de Fátima, Eurico Salles, Carapina I e Bairro de Fátima.
A estação será construída no bairro São Geraldo, na Serra, pela multinacional GS Inima. Inicialmente, ocupará uma área de 11 mil m² nos fundos do Fórum Civil da cidade, em terreno doado pela ArcelorMittal, podendo ser ampliada para 21 mil m² no futuro. A EPAR estará em perímetro urbano, próxima, por exemplo, da UPA de Carapina, do novo Hospital da Unimed e da EMEF Professora Maria Magdalena Pisa.
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Com a entrada em operação da EPAR, a ETE de Camburi será desativada. As três lagoas de esgoto serão aterradas e o local manterá apenas uma estação de bombeamento que enviará os resíduos para a Serra.
300 mil litros de esgoto por segundo
Para se ter ideia do volume, os 300 litros por segundo representam o esgoto gerado por uma população entre 130 mil e 170 mil pessoas — ou, aproximadamente, 311 piscinas olímpicas de esgoto por mês.
O que ainda carece de explicação convincente é por que a EPAR precisa, necessariamente, ser construída na Serra, já que a ETE de origem fica em Camburi e o maior volume de esgoto é gerado em Vitória. Essa decisão alimenta preocupações de que, mais uma vez, estejam sendo transferidos passivos de Vitória para a Serra — uma prática recorrente na relação histórica entre os dois municípios.
Área estratégica para fins imobiliários
De acordo com apuração do TN, A desativação da ETE de Camburi liberaria uma área estratégica de 400 mil m², somando terreno e áreas verdes, entre as avenidas Dante Michelini e Norte-Sul — altamente valorizada para fins imobiliários. A Zurich Airport, concessionária do Aeroporto de Vitória e dona do terreno, já apresentou em 2022 um macroprojeto urbano considerando essa região como uma nova centralidade da capital.
O projeto contempla áreas destinadas à construção de shopping, escolas, faculdade, parques, supermercados, bares, restaurantes, empresas, novas moradias de alto padrão, entre outros empreendimentos. Quando foi anunciado, em 2022, a proposta apresentada era a criação de um ecossistema completo de serviços, no estilo de um “shopping a céu aberto”. Trata-se de um projeto ambicioso, especialmente porque um dos maiores desafios enfrentados pela capital é justamente a escassez de áreas disponíveis para expansão urbana.
Embora não se saiba oficialmente se há participação da Zurich na articulação para desativar a ETE e transferir o esgoto para a Serra, é evidente que a mudança é de seu interesse. Vale lembrar que a ordem de serviço da EPAR foi assinada em 2024 durante um evento empresarial da Apex em Nova York, o que reforça o cunho empresarial do projeto desde sua origem.
Não há problema em haver interesses comerciais, desde que eles não se escondam sob discursos ambientais ou civilizatórios — como abastecimento humano ou uso sustentável da água — para mascarar intenções imobiliárias que favorecem uma cidade em detrimento da outra.
Serra cobra explicações
É nesse contexto que a Serra parece ter despertado. A Câmara Municipal e o secretário de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, Cláudio Denicoli, estão cobrando explicações.
Pode-se argumentar que a ETE também recebe esgoto de sete bairros da Serra. No entanto, esses bairros só passaram oficialmente para a jurisdição da Serra em 2012 — quando o sistema foi concebido, pertenciam a Vitória.
Outro argumento é que o esgoto da Serra também chega à Baía de Vitória pelo Canal dos Escravos. Mas essa situação decorre de um processo de urbanização que privilegiou Vitória e empurrou as ocupações populares para a Serra. O canal, construído no século XIX, era um ramal fluvial para transporte e não um projeto sanitário.
A ArcelorMittal está resolvendo seu problema hídrico para expandir sua produção. A GS Inima assegurou um contrato de bilhões por 30 anos. Vitória elimina o Pinicão de Camburi e libera uma área nobre para crescimento urbano. A Zurich Airport vislumbra lucro com a valorização do entorno do aeroporto.
E a Serra? Fica a dúvida se, no final das contas, está sendo beneficiada ou apenas mais uma vez usada como destino de problemas da capital.